Em meio a pilhas de material desperdiçado e dezenas de protótipos descartados, Daniel Norée e Paulo Kiefe sentiam que precisava haver uma maneira mais eficiente de fazer as coisas. O ano era 2015, e a dupla tinha a tarefa de testar as impressoras da Creative Tools, uma empresa de impressão 3D sediada na Suécia. O trabalho exigia imprimir diversos projetos com detalhes específicos, propositalmente difíceis de reproduzir com precisão. Cada modelo consumia longas horas de impressão apenas para identificar uma única falha, para então acabar na lixeira. Foi nesse cenário que o Benchy nasceu. O Benchy — apelidado por seus criadores de “o alegre teste de tortura da impressão 3D” — é uma peça única que concentra uma série de desafios de impressão, incluindo:
- Overhangs (partes salientes sem suporte)
- Superfícies curvas e suaves
- Furos cilíndricos (sem suportes)
- Detalhes extremamente finos
O pequeno barco também é um teste ideal para detectar:
- Warping (empenamento ou deformação das bordas)
- Problemas na primeira camada (como o “pé de elefante”)
- Inconsistência na altura das camadas
- Falhas no gerenciamento térmico (resfriamento)
- Problemas no controle de movimento dos eixos
Tudo isso em uma escala que leva pouco mais de uma hora para ser concluída na maioria das impressoras. O Benchy não só agiliza o processo de avaliação da capacidade de uma impressora 3D, como também resulta em uma peça simpática e digna de ser exibida na prateleira. O visual peculiar do Benchy conquistou uma legião de fãs fervorosos e garantiu seu lugar como um ícone da impressão 3D, com seu próprio site e um grupo de fãs no Facebook com mais de sete mil membros. Dez anos após sua criação, ele é considerado o objeto mais impresso em 3D de todos os tempos e continua sendo a impressão mais popular no Thingiverse. O artigo analisa por que ele é tão útil e como o Benchy se consagrou como o grande aliado na calibração de impressoras 3D.
Diagnóstico de Problemas com um Benchy

A tabela abaixo resume 13 dos defeitos mais comuns que um Benchy pode revelar, suas causas prováveis e as soluções recomendadas.
Defeito | Como Aparece no Benchy | Causas Prováveis | Correções Sugeridas |
Stringing (Formação de Fios) | Fios finos, como teias de aranha, entre as paredes da cabine, na chaminé ou através das aberturas. | Retração mal ajustada, temperatura do bico muito alta, filamento úmido. | Ajuste a distância/velocidade de retração, reduza a temperatura do bico e seque o filamento. |
Super-extrusão (Over-extrusion) | Camadas do casco irregulares e com excesso de material; superfícies ásperas; plástico sobrando ao redor dos detalhes. | Multiplicador de extrusão/taxa de fluxo muito alto, diâmetro do filamento mal calibrado. | Calibre os passos da extrusora (E-steps), verifique o diâmetro do filamento, reduza a taxa de fluxo. |
Sub-extrusão (Under-extrusion) | Falhas nas paredes, camadas fracas, camadas de topo incompletas. | Bico entupido, E-steps incorretos, multiplicador de extrusão baixo, alimentação de filamento deficiente. | Limpe o bico, recalibre a extrusora, aumente ligeiramente o fluxo e verifique a tensão do tracionador. |
Warping (Empenamento) | Cantos do casco se levantando da mesa, base distorcida. | Má adesão à mesa, mesa muito fria, ambiente com correntes de ar. | Use brim/raft, aumente a temperatura da mesa, aplique um adesivo auxiliar, feche a impressora. |
Layer Shift (Deslocamento de Camada) | As paredes da cabine ou a chaminé parecem deslocadas ou desalinhadas. | Correias frouxas, superaquecimento dos drivers dos motores, obstrução mecânica. | Aperte as correias, verifique as polias, garanta o movimento suave dos eixos e melhore o resfriamento dos drivers. |
Bridging (Pontes) com Defeito | Filamento caído sob o teto da cabine ou no topo das janelas. | Resfriamento insuficiente, velocidade de impressão muito alta, extrusão muito quente. | Aumente a velocidade da ventoinha de resfriamento da peça, diminua a temperatura de impressão e reduza a velocidade para pontes. |
Problemas em Overhangs | Bordas caídas ou deformadas sob o teto da cabine, na chaminé ou na proa. | Resfriamento insuficiente, ângulo de balanço excede a capacidade da impressora. | Melhore o resfriamento da peça, reduza a temperatura de impressão e diminua a velocidade. |
Z-Banding (Faixas no eixo Z) | Padrões ondulados na horizontal ao longo do casco ou da chaminé. | Movimento inconsistente do eixo Z, fuso torto, lubrificação deficiente. | Verifique o alinhamento do fuso do eixo Z, limpe/lubrifique as roscas e aperte os acopladores. |
Ghosting / Ringing (Efeito Fantasma) | Ondulações, como ecos, perto de detalhes como as janelas, o texto ou bordas afiadas. | Velocidade de impressão muito alta, correias frouxas, vibração da estrutura. | Reduza a velocidade/aceleração, aperte as correias, estabilize a estrutura da impressora. |
Falhas no Topo (Top Layer) | Lacunas ou buracos no convés superior ou no teto da cabine. | Poucas camadas de topo, sub-extrusão, sobreposição do preenchimento muito baixa. | Aumente o número de camadas sólidas de topo, verifique a calibração da extrusão, aumente a sobreposição do preenchimento. |
Pé de Elefante (Elephant Foot) | Primeira camada esmagada e mais larga na base do casco. | Mesa muito quente, bico muito próximo da mesa, compressão excessiva da primeira camada. | Reduza ligeiramente a temperatura da mesa, ajuste o Z-offset, reduza o multiplicador de extrusão da primeira camada. |
Imprecisão Dimensional | Janelas, portas ou o casco não têm as medidas corretas. | Passos/mm (steps/mm) mal calibrados, contração do material devido ao resfriamento. | Calibre os steps dos eixos X e Y, ajuste a escala no fatiador, otimize o resfriamento. |
Superfície Áspera | Superfícies do teto ou do casco com acabamento irregular. | Problemas de resfriamento, temperatura muito alta, extrusão inconsistente. | Melhore o resfriamento, reduza a temperatura de impressão e garanta a qualidade do filamento. |
Configurações Padrão

A genialidade do Benchy está na sua simplicidade. À primeira vista, é apenas um barco de 60 mm que imprime em cerca de uma hora com configurações padrão: camadas de 0,2 mm, 10% de preenchimento e velocidade de 50 mm/s. Mas cada curva, ângulo e superfície tem um propósito de diagnóstico. Para ter sucesso, o Benchy precisava atender a vários requisitos: conter uma variedade de formas para revelar as limitações da impressora e ser pequeno o suficiente para ser concluído em um tempo razoável. As configurações padrão do fatiador são as seguintes, mas os usuários são incentivados a testar e experimentar diferentes resoluções para ver o resultado:
- Escala: 1:1 (sem modificações de tamanho, o Benchy mede 60 mm da proa à popa)
- Altura da camada: 0,2 mm
- Preenchimento (Infill): 10%
- Velocidade de impressão (extrusão): até 50 mm/s
- Velocidade de deslocamento (travel): até 150 mm/s
- Diâmetro do bico (nozzle): 0,4 mm
Essas configurações recomendadas já foram levadas ao extremo em diversos projetos, mas continuam sendo a base de referência para a grande maioria das impressões. O objetivo dos criadores não era criar algo que pudesse testar ou calibrar todos os aspectos da impressão 3D, mas sim fornecer um ponto de partida para solucionar problemas comuns: inconsistências de camadas, nivelamento da mesa, ajustes de temperatura e velocidade. O site 3DBenchy.com possui um arquivo PDF muito útil que descreve detalhadamente os parâmetros de design que ele incorpora. Então, como usar o Benchy da melhor forma hoje? O artigo explora como inspecionar a embarcação e navegar por alguns diagnósticos da impressora.
Verifique a Qualidade Geral da Impressão
A primeira verificação é a qualidade geral e os problemas óbvios. Avalie o seu barco recém-impresso. Ele se parece com um barco? Não espere perfeição absoluta: mesmo impressões impecáveis exibirão as linhas das camadas no teto da cabine. Essas saliências marcam o limite de cada camada, criando um efeito de “escada”. Desconfie de imagens de Benchys perfeitamente lisas online, pois muitas são renderizações de computador, e não fotos reais. Fique atento a estes sinais de alerta que podem indicar problemas mecânicos mais profundos:
- Stringing (formação de fios) aparece como filamentos finos, semelhantes a teias de aranha, esticados entre elementos distintos — algo particularmente visível ao redor das portas e janelas. Esses fios geralmente indicam calibração incorreta de temperatura, configurações de retração inadequadas, ou até mesmo um bico parcialmente obstruído.
- Layer shift (deslocamento de camada) se manifesta de duas formas. O desalinhamento horizontal — onde as camadas deslizam lateralmente — geralmente decorre de correias frouxas ou polias gastas. Inconsistências verticais mais sutis, onde algumas camadas parecem mais grossas que outras, costumam ser causadas por problemas mecânicos no eixo Z.
Inspecione o Casco
O casco funciona como uma tela de prova para a sua impressora demonstrar a suavidade das curvas e a consistência das camadas. Sinta a superfície — ela deve ser uniformemente arredondada, sem sulcos ou vales proeminentes. Lembre-se que as mesmas configurações podem produzir qualidades de superfície drasticamente diferentes dependendo do material e até da cor do filamento. Examine o casco sistematicamente em busca destes marcadores:
- Acúmulo excessivo de material aparece como bolhas aleatórias ou pontos em relevo. Calibrar a extrusora pode ajudar. Pequenas imperfeições alinhadas também podem ser causadas pela costura do eixo Z (Z-seam).
- Sub-extrusão se revela através de linhas finas ou falhas visíveis entre as camadas. Isso pode ser causado por temperatura incorreta, obstruções parciais ou problemas no sistema de tração do filamento (especialmente em sistemas Bowden).
- Padrões de superfície repetitivos surgem como ondas sutis, conhecidas como ghosting ou ringing. Esses efeitos indicam componentes frouxos na estrutura da impressora ou no sistema de correias. Quanto mais rápido você imprime, mais pronunciados esses artefatos se tornam.
Examine a Parte Inferior
Este é um ótimo teste para verificar a qualidade da sua primeira camada. Ao virar o Benchy, você verá o texto em relevo “CT3D.xyz”, que deve se destacar em uma superfície lisa. Se o resultado não for bom, os problemas mais comuns são:
- Linhas de extrusão visíveis, com vãos entre elas, indicam que o bico está muito longe da mesa.
- Letras esmagadas ou ilegíveis indicam o problema oposto: compressão excessiva do material, causada por um bico muito baixo.
- Pé de elefante (Elephant’s foot) cria uma base alargada, onde a primeira camada se espalha mais que as outras. Isso resulta de temperaturas excessivas na mesa ou no bico.
Verifique a Cabine e os Detalhes do Convés

Agora, observe como sua impressora lida com detalhes, overhangs e pontes, como a escrita na parte traseira do Benchy. Observe primeiro a parte superior das janelas. A janela frontal (quadrada) deve ter um topo reto, e as janelas laterais devem ser arcos perfeitos.
- Partes superiores das janelas deformadas revelam falhas no resfriamento da peça. O plástico não solidifica rápido o suficiente para manter a integridade estrutural.
- Cantos arredondados indicam limitações no controle de movimento. Quando sua impressora tem dificuldade em executar mudanças bruscas de direção, os cantos se tornam suaves e imprecisos. Reduzir a velocidade geralmente resolve, mas ajustes de firmware mais avançados oferecem soluções definitivas.
- Chaminé com formato irregular sugere problemas de calibração dimensional. A chaminé também apresenta um desafio único: construção vertical rápida, onde cada camada se assenta sobre a anterior quase que imediatamente. Isso amplifica qualquer problema de resfriamento.
Meça e Calibre

O 3D Benchy deve ser impresso no tamanho exato para o qual foi projetado. Uma inspeção visual revela falhas óbvias, mas uma medição precisa expõe desvios sutis de calibração. Para isso, você precisará de um paquímetro. As dimensões detalhadas podem ser encontradas na tabela de medição do site oficial.
- Erros dimensionais horizontais (o comprimento não ter 60 mm ou a largura não ter 31 mm) indicam problemas na calibração dos eixos X e Y. Isso geralmente se deve a valores incorretos de “passos por milímetro” (steps/mm) no firmware da sua impressora.
- Diferenças na altura vertical (a altura total não ter 48 mm) são mais complexas de diagnosticar. Pequenas variações podem ser resultado da compressão da primeira camada, mas desvios significativos apontam para os mesmos problemas de calibração de steps/mm, mas no eixo Z.
A Famosa Linha no Casco

Como todo ícone, o 3DBenchy tem sua própria mitologia. Muitos relatam que os arquivos STL originais causavam erros em alguns fatiadores. Hoje, o site 3DBenchy.com afirma que a geometria do arquivo é 100% sólida, e uma versão no formato 3MF, mais moderna, também está disponível. Mas a discussão mais acalorada sobre o Benchy é, sem dúvida, a respeito das misteriosas “linhas de casco” que podem aparecer. Essas tênues linhas horizontais geralmente só são visíveis quando a qualidade da impressão já é muito alta e têm sido tema de debate por anos, pois até mesmo pequenas alterações de software podem produzir artefatos visíveis.
O Futuro do Benchy

Recentemente, o Benchy tornou-se um projeto de domínio público, garantindo sua evolução contínua. Seus criadores podem ter desejado apenas reduzir o desperdício na oficina, mas acidentalmente criaram algo que permanecerá como uma referência tecnológica tão icônica quanto o “Hello, World” na programação. Desde desafios como a corrida de lanchas Benchy, que inspirou makers a superar os limites da velocidade de impressão, até Benchys microscópicos com 40 micrômetros de comprimento (1/10 da espessura de um fio de cabelo), o barquinho ajudou inúmeros criadores a pensar fora da caixa. Uma busca rápida em sites de modelos 3D revelará dezenas de designs inspirados no Benchy, alguns para diagnosticar impressoras e outros puramente por diversão. À medida que a tecnologia de impressão evolui, o Benchy certamente continuará navegando ao seu lado.
Fonte: All3DP